sexta-feira, 8 de abril de 2011

Texto que o Professor Pedro Demo deixou para os Professores da ETI.

EXERCÍCIO DE TEMPO DE ESTUDO


1. Para aclarar dúvidas sobre o que seria “tempo de estudo” e suas implicações didáticas, faço aqui um exercício preliminar. Para início, vamos combinar que tempo de estudo significa projeto de estudo concebido pelo professor para que o aluno possa pesquisar e elaborar, em vez de ficar escutando aula, concluindo-se com um produto palpável de cada aluno. Papel do professor é de orientar e avaliar, tornando-se o aluno centro de atenção. Avaliação é feita em cima dos produtos sistemáticos dos alunos, significando acompanhamento de perto do processo de produção autoral discente. Supõe-se que a carga curricular seja sensivelmente reduzida, para que os tópicos possam ser tratados em profundidade, dentro da pedagogia da problematização, ou da aprendizagem por pesquisa ou projeto. Aqui arrumo um exercício genérico que poderia ser modulado para algum ano do ensino fundamental. Tempo de estudo pode integrar apenas um tempo previsto, ou mais tempos, dependendo do assunto e da conjugação interdisciplinar. Neste caso, optei por uma proposta interdisciplinar, podendo ser realizada em um ou mais tempos.

2. Tomo como tema “água”. O desafio para o professor é conceber um contexto de problematização, que possa permitir pesquisa e elaboração, individual e/ou coletiva. Para tanto, vamos debulhar algumas faces interdisciplinares da água:

a)    Um dos componentes da realidade terrestre – pode ser vista do ponto de vista físico e químico (ciência): estado líquido; composta de oxigênio e hidrogênio; água potável e salgada; provém da chuva (pode-se estudar como se dá a chuva, condições atmosféricas, tempos chuvosos, neve, chuva de granizo, inundações, tsunamis etc.); água limpa e água suja – água filtrada para tomar em casa; propriedade da água para purificar/limpar (banho);
b)    Referência geográfica – rios/córregos da cidade; rios do estado; pantanal; limites da cidade/estado feitos por rios; mapas;
c)    Referência histórica – rios que desaparecem, ficam pequenos, como os da cidade – história dos rios da cidade; rios/córregos canalizados e que deram problema em enchentes, porque a água tem força inaudita; mudanças do regime de chuvas na cidade com o tempo;
d)    Referência matemática – tamanhos de garrafas e recipientes de água; comprimento de rios, córregos; tamanho do pantanal e quantidade relativa de água; quanta água se deve tomar por dia; volume de chuva por mês;
e)    Referência social e ambiental – vai faltar água?; água em casa – torneiras, canalizações, proveniência; importância em casa (banho, bebida, comida); desperdício de água; água como referência fundamental da sociedade e da família;
f)     Referência econômica – comercialização da água: venda em supermercado; valor econômico (propriedades com água abundante e com pouca água); entidade pública do município que cuida de água, trata e transporta para as residências;
g)    Referência de língua portuguesa – textos sobre água, pantanal, rios da cidade/estado; produção própria de textos; textos que discutem água, falta de água, contaminação da água, comprometimento de cabeceiras e nascentes.

3. Tendo à mão tais tópicos, trata-se agora de formular uma problematização que permita pesquisar e elaborar (de um tempo ou mais tempos, até mesmo de uma semana), dentro de um percurso com fases e produtos, tarefas variadas, inclusive produto final. Num primeiro momento, vou traçar um percurso mais longo, exigindo mais pesquisa e buscas interdisciplinares. Posso imaginar algumas sugestões:
a)    Girar em torno de “água mineral”, colocando-se o seguinte desafio: definir o que é (propriedades químicas); localizar onde se pode achar; produção na cidade ou importação; mapa do estado com os pontos de água mineral; história de fontes ou desaparecimento; descrições das propriedades da água mineral; textos sobre água mineral e suas virtudes para a saúde; tamanhos do engarrafamento de água mineral; capacidades numéricas de minas de água mineral;
b)    De cada tópico selecionado, fazer pesquisa e escrever relatório; por exemplo: relatório do que é água mineral; da produção de água mineral; dividir tarefas entre os alunos;
c)    Produto final: texto coletivo de algumas páginas, precedido de textos individualizados, sobre importância da qualidade da água para vida das pessoas, e, neste caso, da água mineral.

4. Um outro conteúdo: “água tratada da cidade” – processo de captura e tratamento da água para fins residenciais; tratamento químico e produtos químicos que contém; história do tratamento da água na cidade; localização da água a ser capturada, rios da cidade e sua impropriedade para consumo humano; custos de produção da água tratada e características da empresa pública que trata a água; textos desta empresa sobre si mesma, sobre água e sobre consumo de água; conta de água e suas matemáticas; consumo médio da cidade, por habitante, em casa.
De cada tópico selecionado, pedir uma elaboração, primeiro individual, logo coletiva, e que será transformada num texto coletivo ao final, sobre a importância de tomar água filtrada e tratada (não só tratada).

5. Quando se quer usar apenas um tempo de estudo, é preciso modular o tema de sorte que caiba num percurso que demore pouco mais de uma hora. No caso da “água mineral”, pode-se sugerir: trazer garrafas de água mineral para a sala, de preferência uma para cada aluno. A partir daí colocar as questões: Que água se toma, ao se tomar água mineral? Vale a pena? Quais suas virtudes (químicas, entre outras).
Ao mesmo tempo, é o caso distribuir textos que tratem do tema, para que sirvam de material de pesquisa, ao lado das garrafas. As questões precisam poder ser respondidas com tais materiais.
Pode-se dividir a turma em vários blocos, cada qual com seu “abacaxi”.
Cada aluno vai escrevendo seu relatório, enquanto estuda/pesquisa.
Produto final: Refletir sobre – toda água é por natureza boa; o ser humano estraga a água; como cuidar da água...

6. Este tema da água poderia ocupar um dia todo (quatro tempos de estudo), ou mesmo uma semana, desde que seja bem planejado, tempo a tempo, dia a dia. Por exemplo, no primeiro dia, tema mais geral: o que é água, na vida, na natureza, na economia, na história... No segundo dia, água mineral; no terceiro, água tratada da cidade. No quarto dia: chuva (e suas adjacências: chuva grande e pequena, raios, inundações...). No quinto dia: economia e matemática da água, reservando-se uma parte do dia para elaboração final, supondo-se que a cada dia haja uma elaboração. A elaboração final é o resultado cumulativo e articulado de cada dia. Esta sistemática é a mesma que a do “curso de seis dias” e com a mesma “metodologia” de aprendizagem.

7. O que mais importa: estudar sob o ângulo de uma problematização muitas facetas da realidade, inclusive elaboração (texto); aprender a pesquisar e a estudar; motivar os alunos a enfrentarem e a resolverem problemas coletivamente e com produtos individualizados; cobrir o currículo amplamente e com profundidade. Fundamento maior: exercitar autoria dos alunos.
Papel do professor:
a)    Elaborar a problematização e seu percurso, passos, produtos;
b)    Ser capaz de produzir material didático próprio, não só para suprir possível falta de material de pesquisa, mas principalmente para oferecer referências criativas e motivadoras caso a caso;
c)    Exercitar presença maiêutica em sala – não dar aula, a não ser como expediente supletivo e ocasional; cuidar que todos os alunos trabalhem, produzam, se envolvam;
d)    Avaliar dia a dia a produção, dando retorno no dia seguinte, impreterivelmente;
e)    Com tal avaliação, cuidar de aluno por aluno, por conta do conhecimento detalhado de cada um;
f)     Fomentar a interdisciplinaridade do tratamento dos temas, procurando sempre observar e analisar a realidade por múltiplos lados.

8. Com o tempo, pode-se comparar a produção do mês atual, com a dos anteriores, para se poder averiguar avanços ou problemas de atraso na aprendizagem, alunos com maior ou menor condições, dificuldades mais específicas de aprendizagem, tornando-se questão de honra garantir que todos – um a um – aprendam bem. Supõe-se claramente um professor que sabe aprender bem (pesquisar e elaborar), tenha texto próprio, é autor inequívoco, além de compromissado com a causa escolar. É preciso, por isso, dar atenção devida aos professores, para que se sintam bem nesta transformação da didática escolar.

9. Vou ensaiar agora um tema de matemática e língua portuguesa: contando palavras. A ideia é tomar um texto apropriado ao respectivo ano, que sugiro aqui seja o de J.C. de Melo Neto:

Um galo sozinho não tece uma manhã;
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que lê
e o lance a outro;
de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro
e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

10. Do ponto de vista da matemática: contar as palavras do poema como um todo e de cada frase. Qual (ou quais) a palavra que tem mais letras, ou sílabas. Qual a palavra/letra/sílaba mais frequente. Quantas vezes ocorre tal e tal palavra/letra/sílaba. Qual a maior, qual a menor palavra. Pode-se fazer médias por linha, pelo poema como um todo, por exemplo: qual a frase mais longa e tamanho médio das palavras. Por fim, elaborar palavras com tamanhos diversos.

11. Do ponto de vista da língua portuguesa: trabalhar palavra, letra e sílaba; poesia e seu significado, em especial a metáfora da manhã construída por galos cantando; liberdades do poeta para formar frases (mais longas, mais curtas). Ficaria bem se, no começo, fosse possível escutar galos cantando, já que não é mais muito comum escutar galo cantando. Explicar que galos costumam cantar ao nascer do sol, razão pela qual o poeta “atribui” ao galo a capacidade de “tecer” a manhã.

12. Produto final: elaborar um texto à mão sobre o que seria “tecer a manhã”, contando as palavras/letras/sílabas.

13. Este exercício caberia num único tempo de estudo.